Wednesday, August 19, 2009

Beijos

A minha ternura preenchia-te com todas as formas possíveis, como se fosses a mulher que não conheci, e esta tua parte involuntária, construída na minha recordação, e que deambulava no meu carinho rarefeito e despedaçado, era a que me implorava a minha subjugação, a que me fazia sentir um destroço que tropeçava na tua citadela maldita e sublime. A tua volição, a tua parte completa, aquela que eu não construí, nem desejei, imobilizou-me para sempre numa penumbra gelada e nefasta, que me tolhe os movimentos e o sonho. Só então percebi que eras um labirinto escuro e insondável. Mas eu nunca procurei a saída apressada do teu dédalo misterioso; queria ter podido perder-me por lá, apenas orientado pelo teu perfume ténue e florido, numa viagem balizada por premonições e profecias, como se tivesse sido uma epopeia guiada pelas minhas palpitações, como se o meu coração fosse um desvario de rasgões, um farrapo sujo, pronto a ser imolado. Creio que me expulsaste de lá cedo demais, e continuo a sondar-te como uma alma penada, desterrada e lânguida, a ensaiar uma sinfonia tímida e discreta, na tua fímbria, numa esperança desesperada, como se fosses um sonho vaporoso a crepitar no incêndio do mar infindo de lágrimas vertidas. Do que mais tenho saudades são os beijos transparentes e encrespados, entre lábios carnudos e cingidos de ânsia, selados num fecho de saliva, entre sopros apavorados - o pavor de que as línguas não conseguissem esgrimir todo o desejo nas abóbadas celestes do palato, e que nos deixassem na situação impertinente de um amar inacabado.

Natalia Goncharova: Gelado

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Este texto é absolutamente maravilhoso. Suponho que seja da tua autoria.


Beijos

Fátima

12:22 AM  

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