Uma escrita feminina
Teolinda Gersão: descobri esta escritora há pouco tempo e é fantástica. Nos seus livros vibra uma polarização brutal entre o mundo masculino e o mundo feminino. O mundo cinzento é pintado pela sensibilidade feminina, que o penetra até à substância. É na emancipação da mulher, na libertação do seu corpo, no fim da infância letárgica a que muitas mulheres estão sujeitas, que o mundo ganha coerência e alegria, com o amor à solta - é o fim (esperado) do mundo masculinizado, frio e sem sentimentos, muitas vezes abstractizado num fascismo asfixiante, que cria um mundo de forças que sufoca todas as relações humanas, mesmo as mais elementares. Não é uma escrita feminista, mas fantasticamente feminina. É uma diva das letras, resumindo.
Era um amor que a empurrava para a frente, incendiando a sua vida parada de adolescente à janela, de repente ela saltara todas as barreiras e ninguém mais poderia impedi-la de correr ao seu encontro, uma força arrastando-a e trazendo-lhe a revelação fascinada do mundo e de si própria - porque até aí não tivera corpo, verificou debruçada à janela, magoando-se de propósito para sentir-se viva, vagueara apenas, flutuando, pela casa, sem tempo, e o que agora descobria era um milagre vertiginoso, com um sabor estonteante de alegria, marca-me bem fundo no corpo, na memória, para que nenhum tempo nem distância te possam apagar, os seus dedos percorrendo-a, as mãos procurando-se, estreitando-se, unindo-se a todo o comprimento dos braços, os corpos de súbito deslizando juntos para dentro de um ritmo - as coisas que ficavam doravante para trás, o tempo parado, dentro do jardim, o muro de pedra, manchado de branco, o portão verde de repente transposto, - ela fora tão protegida, sorriu olhando de relance atrás de si, tinham tentado retê-la tão longamente na infância, mas em todas as janelas, portas, cancelas, havia sempre finalmente um fecho abrindo-se, uma saída desenhando-se entre duas tábuas mal unidas - de repente o seu corpo emergia da bruma e era livre, e com ele todas as palavras se soltavam, abriam as suas asas luminosas e levavam-na consigo para outras direcções multiplicadas, lábios, braços, subida, grito, e de novo o ponto de partida, o secreto ponto onde recomeçava o voo, cavalo alado sobre praia, sobre areia, verde campo sem margem, as crinas no vento, a cabeça no vento, o corpo tremendo de pressa e de alegria, até ao último grau do cansaço - as palavras que o teu amor deixa no meu corpo, faz nascer no meu corpo, estavam talvez já lá muito antes, mas sem forma, dormindo, e de súbito é o amor que as solta e a cidade é um pássaro, um cântico, um grito, e eu desço as escadas nua e jubilosa porque não há distância entre o corpo e o real, é só estender a mão e construí-lo, porque a alegria vence todas as barreiras e é da força do amor que nasce o mundo(...)
Teolinda Gersão in "Paisagem com mulher e mar ao fundo"
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