Mar
A realidade flui, dizia Heraclito. Escorre, avessa a qualquer tipo de tangibilidade. É o que me ocorre sempre que observo o mar. Nunca compreendi o meu fascínio por essa massa de água, em perpétuo movimento, indiferente a qualquer vicissitude humana.
Qual será a verdadeira essência do mar? A sua substância, o seu engodo, afinal?
Será a alegoria mais perceptível do logos pré-socrático, o tal discurso da realidade, que só com humilde sabedoria se torna possível a sua leitura, e não com a petulância típica dos teorizadores da realidade?
Platão aproveitou esta visão de Heraclito para criar o mundo sensível, dos objectos, que flui, com um correspondente mundo ideal, imutável, inacessível (Deus?)- as ideias-, mundo perfeito e tipológico.
Qual será a "ideia" subjacente ao imenso objecto que constitui o mar?
À minha frente, com o mar como pano de fundo, está um casal de namorados a trocar carícias, indiferente ao que tem diante de si. Provavelmente, para eles, e para cada um deles, a realidade agora é momentânea, a sua execução é feita num toque suave dos lábios, nos dedos entrelaçados, num deslizar de uma perna sobre outra. A execução plena é feita num roçar de carnes e, provavelmente, de desejos. Gosto do alheamento deste casal. Provoca. Dilacera a realidade, vivendo no mundo dos sonhos. A mão direita dela está sobre a mão esquerda dele. Por entre os dedos das mãos que restam, a realidade desliza num eterno fluir. Neste pôr-do-sol, o mar estende-se em chamas até ao fim do horizonte. A invulnerabilidade deste mundo sensível está presente no brilho dos olhos dos amantes, que fixam o infinito, esperando que este momento não termine, e que a realidade não mude, pelo menos por enquanto...
Praia Grande 17 Dezembro de 2006
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