Monday, June 26, 2006

A morte nada é

Agora que se aproxima a perda inexorável de um ente querido para mim, volto à pergunta já colocada aqui neste espaço: será a imortalidade da alma a melhor forma de mascarar o que de trágico e absurdo tem a nossa condição? Para quê sonhar um destino humano para tudo Isto? Será a melhor forma de nos libertar da nossa finitude avassaladora- talvez fosse a forma mais fácil, de facto, de aliviar a sensação de aperto que vai crescendo no peito...
Nestas alturas, lembro-me sempre de Lucrécio. No seu materialismo radical tentou não resolver o problema, mas, pelo menos, aliviar o peso da nossa exiguidade cósmica. Não se trata de negar a morte, mas sim ter em conta de forma lúcida os nossos medos e angústias, não se trata de esquecê-la mas sim de ultrapassá-la.
Com Lucrécio, a poesia torna-se serva da filosofia para dissipar os nossos terrores e estabelecer a morte na sua verdade: ela não é nada...


Não, mesmo se o tempo recolhesse a nossa matéria
depois da morte, colocando-a na sua ordem actual,
a luz da vida nos fosse entregue,
não, isso não nos poderia afectar de modo nenhum,
estando a nossa memória desde logo quebrada.
Mesmo hoje, aquilo que nós fomos outrora
não nos é importante, não nos atormenta nada.
Contempla para trás esse espaço imenso
do tempo passado e imagina todos os seus movimentos
da matéria, assim tu te convencerás facilmente:
os átomos que nos formam hoje
ordenaram-se frequentemente na mesma ordem que hoje,
mas a nossa memória não consegue agarrar o passado
porque entretanto a vida marcou uma pausa
e todos os seus movimentos foram cá e lá
vogando na aventura longe da sensação.
Sim, se é preciso haver mal e dor no futuro,
é preciso sofrê-los para que o homem ainda exista.
Porque a morte isso exclui, ao abolir
o ser no qual as tristezas podiam concentrar-se,
seguramente a morte nada tem de temível para nós.
Quem não existe mais não pode ser infeliz
e não importa nada que se tenha nascido um dia,
quando a vida imortal tomou a vida mortal.
(...)
"Tu, pelo menos, tal como estás na morte adormecido,
como tal nunca mais serás, longe de todo o sofrimento.
Mas nós, perto das tuas cinzas, dessa pira horrível,
de forma incansável choraremos e este desgosto
eterno, nenhum dia no-lo arrancará dos nossos corações."
Perguntamos então o que tem tanta amargura,
se ocorre de forma plácida e no sono,
para que se se consuma num luto eterno.
(...)
Mas ninguém tem nostalgia de si mesmo ou da vida
quando o espírito e o corpo estão ambos adormecidos.
Sim, nós aceitaríamos que tal repouso fosse eterno
e que nenhum arrependimento nos atormentasse então.
No entanto, os átomos esparsos no organismo
não se vão perder para longe dos movimentos sensitivos
para que o homem ao despertar se consiga prender a si mesmo.
Concluamos que a morte nos é bem menos ainda,
se pode haver menos do que aquilo que não é verdadeiramente nada.
Maiores são de facto a dispersão e a desordem
da matéria após a morte, e ninguém se reergue
uma vez que tenha vindo a fria pausa da vida.

Lucrécio

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Olá Gonçalo,

A Fátima contou-nos do teu "cantinho"... e não queriamos deixar de o ler :) Desculpa termos demorado tanto tempo a chegar :P Como não podia deixar de ser este é, sem dúvida, um espaço onde deixas as tuas visões sempre interessantes sobre a vida :)

Lamentamos saber que se aproxima a morte de alguém que te é querido... estas são sempre ocasiões tristes e que, de uma forma, ou de outra, nos afectam. Ao ler o teu post, lembrei-me(Patrícia) da morte de alguém que nos é e sempre será muito querido... o marido da minha madrinha de baptismo. Apesar de eu ser afilhada do filho deles, nós sempre lhe chamámos padrinho e ele era uma pessoa muito bem disposta e que nos fazia rir... todos os dias sinto falta dele, mas não posso deixar de concordar com o texto de Lucrécio que citaste, particularmente esta frase:

"Mas ninguém tem nostalgia de si mesmo ou da vida, quando o espírito e o corpo estão ambos adormecidos."


Nós seremos sempre quem terá a saudade dos tempos que foram... mas as recordações irão sempre permanecer e fazer-nos sorrir.

Apesar de não nos vermos há algum tempo, esperamos que saibas que podes sempre contar connosco para o que precisares!

Beijinhos grandes(Gémeas)xxx

5:44 PM  
Anonymous Anonymous said...

Ao ler o teu post não pude deixar de pensar na dor que senti quando perdi o meu pai. Embora a situação fosse inevitável, emocionalmente foi muito difícil de aceitar. Perder o meu pai significava deixar de ter presente um grande amigo,alguém com quem eu adorava conversar. No dia em que me despedi dele para sempre senti um vazio, como se tivessem arrancado um pedaço de mim. Hoje, de forma mais racional, aprendi a viver com algo que nem a morte pode apagar, as lembranças do óptimo pai e amigo que ele foi. A saudade permanece mas a dor foi amenizada pela passagem do tempo. Afinal, a vida é um ciclo que começa e termina.

Fátima

11:48 PM  

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