Sunday, February 04, 2007

A culpa metafísica e a actual lei da IVG

Começo a ficar cansado com a questão do aborto. Isto deve ser uma estratégia de alguns movimentos do não para que a abstenção aumente- no lado do sim, onde deve estar a maioria dos abstencionistas-, massacrar e intoxicar o mais possível, para que as pessoas fiquem em casa.

Eu, como a maioria das pessoas, sou contra o aborto. Mas vou votar sim, no referendo. Incoerente? Tanto como toda esta trapalhada política que é este referendo, assente numa falsa questão e numa pergunta mal formulada. Falsa questão porque o que está em causa não é o aborto, mas apenas uma alteração pontual duma lei hipócrita. Pergunta mal formulada, porque vai levantar dúvidas de interpretação a muita gente.

Acho curioso o facto de terem surgido tantos especialistas em bioética, nos últimos dias, neste país. Eu, que estudo problemas de ética subjacentes às ciências naturais desde há muito, porque é a minha área de formação, fico boquiaberto ao observar médicos a mostrarem ecografias de fetos com x semanas, com o objectivo de mostrarem que já há vida por ali. É óbvio que já há vida ali- ali, e desde muito antes, mais ou menos há 3800 milhões de anos, desde que há vida neste planeta, e ela foi assumindo diversas formas, incluindo o ser humano, num fluxo contínuo de informação genética e biodiversidade. Vamos serenar e deixar este género de debates, interessantes sem dúvida, para a calma do mundo académico ou, até, conversas ocasionais. Senão, se assim continuarmos, vamos terminar por concordar com um destacado dirigente político português, que achava que a masturbação masculina era comparável ao genocídio, pela perda de possíveis portugueses durante o acto...

Eu, individualista como sou, fico chocado com a atitude de uma parte da população portuguesa, que vai votar não, entendendo que a mulher não deve, nem pode, decidir sobre si mesma. Isto, em 2007, é irreal. Como pretender que uma lei deva ser uma tutela autoimposta que leve a mulher a abdicar de uma decisão que é só sua? A abdicação, por parte da mulher, da própria decisão, pondo em perigo a sua autonomia política e, também a sua dignidade, é algo digno de um sistema totalitário. Claro que a democracia, de forma inteligente, costuma escudar-se na tomada de decisões por maioria, de forma a retirar de cima de si qualquer tipo de responsabilidade política e metafísica- daí o fiasco do referendo de 98-, em que vingou um lei estúpida e desprestigiante para qualquer ser humano do mundo moderno.

Nós todos temos sempre alguma culpa, quando uma mulher é julgada(enxovalhada) em tribunal, porque praticou um aborto, ou quando tem de efectuar um aborto clandestino. Provavelmente, essa mulher não tinha dinheiro para passar ao lado do sistema imposto pela lei em vigor. Para além da nossa responsabilidade política por esta vergonha, pesa sobre nós a culpa metafísica- aquela que nós temos todos os dias, quando prosseguimos a nossa vida, indiferentes às injustiças que nos rodeiam, violando a solidariedade humana e universal-porque, se nos desculpamos com a culpabilidade de um ente colectivo, o estado, como sendo suprahumano, ou seja, sem nenhum ser humano responsável por qualquer acto que aquele cometa, depressa se chega um inferno moral, descontrolado e digno de um livro do Kafka.

É melhor que as pessoas reflictam sobre isto, porque reflectir, filosofar, pensar é um imperativo. A filosofia não serve só para eremitas que vivem isolados e gostam de especular, numa espécie de consolo onanista. Em questões como a do aborto, a vida é filosofia e a filosofia é vida:


(...)no sentido em que a filosofia precede a sua senhora levando a luz e não vai atrás dela levando a cauda do seu vestido(...) Nem a vida nem a filosofia podem bastar-se a si mesmas. Mas o homem que, filosofando, leva à sua frente a tocha, procura o justo, sabe, na sua desilusão e esperança, que depende daquilo que escapa ao seu conhecimento.


Karl Jaspers



1 Comments:

Blogger alone_boy_in_the_city said...

Descobri este blog por acaso... Mas a coincidência ainda é maior porque sou aprendiz se Filosofia.
Gostei do «espaço». Da filosofia e das emoções.
Voltarei, certamente.

2:41 AM  

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