Sunday, March 11, 2007

O amor, o finito e o infinito

Quero contar-te uma história que sempre teve para mim um grande significado. Era uma vez um sábio que vivia algures na Holanda. Era orientalista e era casado. Certo dia, ao meio-dia, ele não apareceu para a refeição, se bem que tenha sido chamado para tal. A sua mulher, impaciente, esperava, sabendo que ele estava no seu escritório, e quanto mais a espera durava, menos ela conseguia explicar a sua ausência. Por fim, decide ela mesma ir procurá-lo para que viesse tomar a refeição. Ele lá continua, sozinho no escritório, não há ninguém com ele. Está absorvido nos seus estudos orientais. Posso imaginar que ela se inclinou sobre ele, colocou o braço em redor do seu pescoço, deitou um olhar sobre o livro e, em seguida, olhou para ele e disse: "Meu amor, porque não vens tu comer?"O sábio quase não teve tempo de prestar atenção à pregunta, mas quando viu a sua mulher provavelmente respondeu: "Sim, minha querida, o almoço está fora de questão, encontrei aqui um vocalismo que nunca tinha visto anteriormente, já tinha visto esta citação muitas vezes, mas nunca desta forma, e trata-se, no entanto, de uma excelente edição holandesa; repara, este ponto aqui basta para pôr-te louca." Posso imaginar que a sua mulher o olhou meia sorridente, quase ralhando com ele que um tal ponto fosse suficiente para alterar a ordem doméstica, e a lenda diz que ela lhe respondeu: " Será que isso vale assim tanto esforço?, é melhor troçar disso." Ela soprou e o vocalismo desapareceu; tudo porque o ponto estranho era um simples grão de rapé. O sábio, muito contente, apressou-se a ir para a mesa, feliz com o desaparecimento do vocalismo e ainda mais contente com a sua mulher.

Queres que tire para ti a moral desta história?

Se o sábio não fosse casado, ter-se-ia tornado provavelmente louco e teria arrastado outros orientalistas com ele. É por isso preciso viver inteligentemente com o outro sexo(...) a mulher possui, para explicar o finito, um talento inato, um dom original, um virtuosismo absoluto. Após a sua criação, o homem manteve-se príncipe e senhor de toda a Natureza: as sumptuosidades esplêndidas da Natureza, todas as riquezas do finito apenas esperavam um sinal dele, mas ele não concebia aquilo que devia fazer.(...)

Então a mulher foi criada. Ela não era embaraçada, ela sabia logo como proceder; sem modos, antes de mais, ela estava imediatamente pronta a começar.(...) Uma mulher concebe o finito, ela compreende-o radicalmente, é por isso que ela é soberba e, no fundo, toda a mulher o é, é por isso que ela é charmosa; nenhum homem o é; é por isso que ela é feliz como nenhum homem o é nem o deve ser; é por isso que ela concorda com a existência como nenhum homem pode ou deve fazê-lo. É por isso que se pode dizer que a sua vida é mais feliz que a do homem, porque o finito pode tornar feliz um ser humano, o infinito, como tal, nunca. Ela é mais perfeita que o homem, porque aquele que explica alguma coisa é bem mais perfeito do que aquele que corre atrás de uma explicação. A Mulher explica o finito, o Homem corre atrás do infinito.


Kierkegaard




O amor do casal é então um espaço ético, ou melhor, a vida ética é domínio do finito ou o domínio onde se deve, para viver de forma concreta, concordar o finito e o infinito. O infinito é representado pela pesquisa do sábio, e a sua esposa representa o poder do finito. O amor, como união real, simbolizada aqui pelo casamento, vê-se na condição de integrar-se na simplicidade prosaica do finito, de sair da abstracção, do infinito, do indeterminado e do absoluto- a paixão? Este torna-se então realidade concreta, onde cada um dá ao outro aquilo que cada um não conseguiria sozinho, onde cada um representa ao outro a realidade. O amor vivido e real repousa sobre a dádiva de cada um ao outro: esta dádiva consiste em facilitar o acesso à realidade do amor, que é, desde logo, demasiadamente absoluto e abstracto. Será então amar dar uma realidade ao infinito abstracto e transcendente do amor esquecido por essência do concreto? Sinceramente não sei a resposta...

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Na sequência do teu post lembrei-de um excerto de um livro que estou a ler chamado "O Caminho Menos Percorrido." Apesar de ser uma romântica incurável, estas palavras que irei escrever fizeram sentido. O autor disse que são do profeta de Kahlil Gibran, sobre o casamento:

"Mas que haja espaços na vossa união,
E que os ventos dos céus dancem entre vós.

Amai-vos um ao outro, mas não façam do amor um elo:
Deixem-no antes ser um mar que se move entre as praias [das vossas almas.
Encham a taça um do outro mas não bebam só duma taça.
Dêe do vosso pão um ao outro mas não comam [do mesmo pão.
Cantem e dancem juntos e alegrem-se, mas deixem [que cada esteja só,
Tal como as cordas duma harpa estão sós embora vibrem [com a mesma música.

Dêem os vossos corações, mas não para que cada [um os guarde.
Porque só a mão da Vida pode conter os vossos corações.
E mantenham-se juntos mas não demasiado próximos:
Porque os pilares do templo estão afastados,
E o carvalho e o cipreste não crescem na sombra [um do outro."

Bom, espero que isto tenha feito algum sentido... desculpa ter-me alongado com o meu comentário.

Beijinhos e boa semana :)

Patrícia

12:34 PM  

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