Porque amar é, antes de tudo, evocar quem se ama, mesmo quando esse alguém já partiu:
E subitamente - querida. Subitamente - querida Sandra. Tenho tanta necessidade de estar contigo. Se deixássemos entretanto o senhor Paixão? Bem sei que não é ainda a hora de tu vires à minha vida. Há que fazer o liceu em Penalva, há que ir depois para a Universidade. E só então - tu. Mas estou tão cheio de pressa. Estou só, neste casarão deserto, deixa-me falar já de ti. Deixa-me fazer-te existir antes de existires. De que me serve tudo quanto me aconteceu, se me não aconteceres tu? Estás lá, em Penalva, esperas-me no alto da vida com os teus olhinhos vivos pretos. Estás lá, não tu, talvez, oh, foste sempre tão difícil. O que me existes neste instante, não é decerto o que foste. O que me existes é o que em mim te faz existir. Estou só. E isto é horrível, não sei se fazes bem ideia aí na cova. Tens mortos de companhia e a comodidade de não seres. Eu não. Estou vivo ainda, sou ainda, e isto não é um modo cómodo de haver mortos à minha volta. Vou fazer-te existir na intensidade absoluta da beleza, na eternidade do teu sorriso. Vou fazer-te existir na realidade da minha palavra. Da minha imaginação. Estou absolutamente decidido, como é que vou suportar na realidade da minha palavra. Da minha imaginação. Estou absolutamente decidido, como é que vou suportar tantos anos ainda sem ti? Estás alta, na memória, ao apelo do meu cansaço. Como vou suportar a vida toda e a terra e o universo sem ti no centro da minha cosmogonia? Tudo isto é absurdo - tu foste sempre tão difícil. Mas estás morta, posso inventar-te agora como quiser. Agora ao menos, depois talvez te esqueça, enquanto a tarde lá fora, é uma tarde de Verão. E estou só, quase morto também. Passei a vida toda à procura de uma palavra que ma dissesse. Não a encontrei. Na casa de banho ao lado - em que é que estava a pensar? São portadas de alto a baixo, estão fechadas empenadas - em que é que estava? Realizar a vida em torno de uma ilusão qualquer. Vou amar-te intensamente como se o amor o fosse - eu disse os teus olhinhos pretos? Creio que já há bocado, tu sentada à borda da cama, o teu chapéu de grandes abas flexíveis, uma fita azul e pontas cruzadas, mas agora não. Possivelmente serás assim, morena, minúscula, os olhinhos pretos e vivos - agora não. Vejo-te na mata da cidade, vejo-te de costas. Vais a correr com um bando de colegas por um caminho de neve, e os teus cabelos louros. São louros, como é que me não lembrei? Saem de um gorro azul de malha, espalham-se nas costas, agitam-se na corrida como seu triunfo. E as pernas engrossadas de meias azuis, erguem-se alternadamente na corrida sem razão. A mata cobre-se de neve, há neve na beira do caminho, um sol rígido ao alto. Depois parais num largo, pequenas pugnas de neve entre vós, festa de riso. Enquanto nós, eu e uns colegas, tínhamos corrido também, vou atirar-te uma bola de neve. No centro do teu riso e do teu olhar. É azul como agora a minha imagem da sublimação. Uma estrela de neve na testa, vou atirar-te uma pequena bola, ela embate-te na fronte, explode em pedaços para todos os lados do teu riso. E de súbito ficas imóvel assim, instantânea de luz, a boca enorme de alegria e os dentes visíveis de sol, e os olhos rápidos de cintilação. Fica-te assim, oh, não te mexas. Tenho tanto que dar uma volta à vida toda. Não te movas. Sob a eternidade do sol e da neve. Uma malícia súbita no teu riso, no teu olhar. Um clarão à volta de deslumbramento. Irradiante fixo. Não te tires daí. Instantâneo da minha desolação. Tenho mais que fazer agora. Não saias daí. A boca enorme de riso, os olhos oblíquos de um pecado futuro. Fica-te aí assim, talvez te procure ainda, talvez te escreva uma carta de amor. Daqui donde estou, está uma tarde quente. De amor.
Vergílio Ferreira, in "Para Sempre"