Tuesday, June 29, 2010

Mar

Estive hoje no regaço da natureza, numa esplanada sobre o mar. Só hoje reparei que o mar nunca tem a mesma tonalidade. Esta depende do matiz do meu estado de espírito. Por isso, nunca me canso de olhar o mar, ele é irrepetível ainda que pareça sempre igual. Consigo sempre descobrir diferenças na monotonia da sua repetição. O mar está diferente. Porque eu estou diferente. O mar de hoje é irrepetível porque o meu eu também o é. Porque o que é banal se diversifica, consoante eu me realizo nessa diversificação.

Monday, June 21, 2010

O ler e a vida

Esta educação é dialéctica. A literatura faz de nós melhores observadores da vida; e permite-nos exercitar o dom na própria vida; que por sua vez nos torna mais atentos ao detalhe na literatura; que por sua vez nos torna mais atentos ao detalhe na vida. E assim sucessivamente.

James Wood

Sunday, June 20, 2010

Como linhas...

Ainda hoje não sei que linhas nós traçámos: se o choque foi tão brutal que nos repelimos para sempre ou se continuamos linhas paralelas e, nesse caso, só nos encontramos no infinito. Sinto falta do tempo em que nos aproximávamos e tenho ânsia que chegue rapidamente a eternidade, para darmos o nó nesse ponto tão distante no tempo e, embaraçosamente, tão perto do nosso desejo.

Thursday, June 10, 2010

Um texto que paira


Leve como pena, a luz apagada, a incrível doçura do teu corpo. Frágil minúsculo na ponta dos dedos da minha mão. Apanhar-te toda , amachucada toda na palma da minha mão. Friso subtil dos meus nervos, ah, o veludo do teu calor. Carne virgem, a seda da tua pele, os teus seios ocultos como flores de estufa. Tanto como te sonhei e imaginei no meu querer de crise e estava agora ali total, tinha medo de te tocar, destruir. Tão melindrosa evanescente. Então devagar. Queria ter-te toda e parecia-me que alguma coisa de ti me fugia e não entrava no domínio da minha posse, da minha absorção. As minhas mãos pelo teu corpo franzino, na face, nos seios, nas pernas de criança. Estavas em silêncio, respiravas alterada no meu ombro, ave trémula. Uma serrilha fina, subtil ácido na fímbria dos meus nervos, não tinhas uma palavra, respiravas fechada em ti. Fechada, secreta, ajustada cerradamente, pequenina dócil - desvendar-te. Tenho dores em todo o corpo, nas articulações. Tremo todo eu no mistério do teu corpo guardado desde a eternidade para mim. Tremo eu todo na impossível inverosímil presença da totalidade cálida de ti. Febre que grita em cada átomo de mim, grito na profundidade das vísceras ao excesso do meu delírio, tu quieta à minha profanação. Corpo suave na mistura intensa da nossa mútua fecundidade, plasma ígneo de nós e tu subtil sem a força que aguente a minha abundância poderosa. Leve apenas, ave ferida, submisso fino um queixume, toda a tua pessoa furtiva, todo o fugitivo de ti, toda tua pessoa arisca e graciosa fechada agora em mim, no meu excesso a transbordar. E aí te perdes longamente, aí te perco, até que o mundo renasceu e tu no centro e ao pé de mim. Rapidamente então ergueste-te, eu ouvia-te ali ao pé na purificação de ti, renascida, purificada e imediatamente adormeceste. E ergui-me eu também, vim encontrar-te na distância aérea dos anjos e das crianças. Só eu não dormia, pregado na noite como uma estrela. E de mim a ti uma bênção que eu não tinha mas sentia num impulso a um sorriso, a uma pacificação que se expandia de mim e ia até aos limites da vida e te inundava de uma imponderável ternura. Assim estive longo tempo, mas eu precisava tanto de te tocar. Recuperar a tua realidade inacreditável, a tua presença no centro do universo. A mão suave na fronte, o lume de um meu dedo na fímbria do teu corpo. A respiração subtil da minha boca na tua face. O halo fugidio da minha presença na tua - e tu rodaste sobre ti, um apagado ciciar da tua boca. Pregado na noite como uma vigília, irradiada de uma luz viva e trémula - dorme. Que é que eu amo em ti? Não é o teu corpo, não é o teu espírito, mas a transfiguração de um pelo outro, a transcendência da tua carne frágil, a abordagem de quem tu és no mais profundo de ti, na posse compacta de toda tu, no espasmo de um punho cerrado - dorme. Não posso dormir, não quero. Como perder esta hora máxima de ser, de tocar toda a tua realidade secreta, drasticamente separada, segregada da minha ânsia em agonia? Porque tu eras para mim o puro irreal e imaginário, o subtil incorpóreo, a pura iluminação sem consistência, a aparência do não-ser, a terrível beleza intocável, a graça aérea imaterial. E agora estavas ao pé de mim, e eu estendo a mão devagar para condensar em realidade a tua imaterialização. Como dormir e perder-te e acordar depois - tu não estares aqui e ser tudo fantástico de impossível? Estendo a minha mão, és tu real na febre da minha mão. Então rolaste de novo sobre ti e eu tive medo. Medo do meu excesso, na aflição da minha angústia. Tremente, perdido(...)


Vergílio Ferreira in Para sempre

Saturday, June 05, 2010

Teologia individual

(...)todos los hechos que pueden ocurrirle a un hombre, desde el instante de su nacimiento hasta el de su muerte, han sido prefijados por él. Así, toda la negligencia es deliberada, todo casual encontro una cita, toda humillación una penitencia, todo fracaso una misteriosa victoria, toda muerte un suicidio. No hay consuelo más hábil de que el pensamiento que hemos elegido nuestras desdichas; esa teología individual nos revela un orden secreto y prodigiosamente nos confunde con la divinidad.

Jorge Luis Borges in Deutsches Requiem